abracei o corpo da minha mulher, segurei-lhe a mão, a sua cabeça no meu ombro, criei um pequeno embalo, como para adormecê-la, ou como se faz a quem chora e queremos confortar. vai ficar tudo bem, vai correr tudo bem. o que era impossível, e o impossível não melhora, não se corrige. estávamos encostados à parede, sobre o cortinado, como fazíamos na juventude para os beijos e para as partilhas tolas de enamorados. estávamos escondidos de todos, eu e a minha mulher morta que não me diria mais nada, por mais insistente que fosse o meu desespero, a minha necessidade de respirar através dos seus olhos, a minha necessidade vital de respirar através do seu sorriso. eu e a minha mulher morta que se demitia de continuar a justificar-me a vida e que, abraçando-me como podia, entregava-me tudo de uma só vez. e eu, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do medo e recomeçava a gritar.
com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o dardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.
in "A Máquina da Fazer Espanhóis", Valter Hugo Mãe
Acabei de ler este livro algures no início de Maio. A falta de maiúsculas (características dos capítulos escritos pelos "olhos" da personagem principal) é de fácil habituação. Passado o primeiro capítulo já parece fazer todo o sentido que assim seja. O livro é duro, realista, quase assustador. Fala da recta final da vida de alguém. A história é simples. Tem passagens excelentes e a ironia do senhor Silva é extraordinária. Vale muito a pena
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